10.3.13

Reflexão de notícias # 39

'Não acabei a escola'


Esta é a era do conhecimento mas a escola não seduz uma camada dos mais novos. O País regista uma das maiores taxas europeias de jovens que não concluíram o 12.º ano. Sobretudo rapazes. Retrato de uma geração marcada pela baixa escolaridade. 






A algazarra das gaivotas anima o céu cinzento da doca de Matosinhos. Paulo Almeida, 23 anos, embalado no passo, cumprimenta aqui e ali os parceiros de lota. Com eles tem partilhado, regularmente, o nascer do Sol. Há mais ou menos dez anos. A partir das duas e meia, três da manhã, desce ao cais e ajuda a transportar o pescado para o armazém. Paulo só fez o 4.º ano, nunca chumbou mas já nem se lembra bem de quando abandonou a escola. "Aquilo não dava para mim", justifica. "Havia lá muitos 'gandins', era só vícios", justifica-se.

Não conta que o cheiro do peixe, entranhado na roupa, o tornou um alvo fácil dos colegas. E que originou o empurrão para a rua. Ocupou-se, anos a fio, com biscates.

Até que deixou de arranjar qualquer trabalho. Pelo caminho, perdeu os dentes - não tem um para amostra, na frente.

"A minha mãe também é assim", desculpa-se. O pior é que mal sabe escrever. Além do nome, só consegue juntar as letras dos peixes mais comuns lá da lota. Tem mais três irmãos e mora com os pais na Biquinha, bairro social de Matosinhos, num rés do chão. Por ali não há muito mais que um amontoado de prédios e ruas desertas. Sobram o pavilhão desportivo e a sua antiga escola primária.

É hora do recreio e os pequeninos correm pelo pátio. Paulo fixa-a, num primeiro instante depois acaba por desviar o olhar. Mágoa? Paulo tem agora uma nova esperança para mudar de vida, a Escola de Segunda Oportunidade. Está prestes a concluir o 9.º ano, com a ajuda de um curso de cozinha.

Mas o apoio vai mais além. Até já lhe marcaram consulta no dentista para arranjar os dentes. Mesmo assim, a conclusão do Ensino Secundário, dado usado pelas estatísticas para analisar o fenómeno do abandono escolar precoce, ainda é um objetivo demasiado distante.

"O número de jovens que sai da escola cedo de mais ainda é muito alto e certamente superior ao oficialmente estimado ", afirma Luís Mesquita, 54 anos, diretor da Escola de Segunda Oportunidade, nascida por sua iniciativa, em conjunto com mais uma mão-cheia de professores e técnicos, a autarquia de Matosinhos e a Direção Regional de Educação do Norte.

Trata-se da única instituição de ensino do País inscrita na Rede Europeia contra o Abandono Escolar. Serve jovens entre os 16 e os 25 anos com percursos complicados e que deixaram a escola sem as qualificações básicas. "Segundo a OCDE, a nossa taxa está nos 37%", revela o especialista.

Pior só na Turquia, precisa o documento. Apesar do trabalho benemérito a escola já apoiou mais de 200 jovens, multiplicam-se as dificuldades. Em julho, souberam que o financiamento estava tremido.

Depois, lá suspiraram de alívio, quando ganharam o apoio da EPIS Associação de Empresários para a Inclusão Social, que providencia projetos com jovens em todo o País. Mais recentemente, o grupo anunciou, pela voz de José Manuel Canavarro, ex-secretário de Estado da Educação, e membro do seu conselho científico, o alargamento da iniciativa a dez novos concelhos, somando 16, no total. A bonança foi curta. Duas semanas depois do início oficial do ano letivo, ainda aguardavam o desbloqueamento da verba que lhes fora destinada pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional. "Estamos quase desesperados: isto pode deitar todo o nosso esforço a perder", alertava Vítor Pinto, 36 anos, professor de Educação Física na escola e mentor de muitos daqueles miúdos. A verba lá saiu, mas com aviso: só estava prevista até ao Natal.

O futuro é uma incógnita. Mas do trabalho feito ninguém reclama.


DISCURSOS AMBIVALENTES
Oiça-se João Pereira. Já festejou os 25 anos, mas, na escola, não conseguiu ir além do 6.º ano. Nem sabe quantas vezes chumbou. Também não sabe ler grande coisa. Contas, lá as vai fazendo, às vezes. "Só um bocadinho de matemática para a vida", como quem diz contas básicas para ir às compras e receber o troco. O caso dele também se pode explicar por dificuldades de aprendizagem. Ou pelo facto de ter sido abandonado pela mãe, aos 2 anos.

Ninguém tal diria, ao vê-lo chegar, de bicicleta. Ou a encestar, com destreza, num jogo de básquete improvisado, no meio do pátio da escola de Matosinhos. Apesar de tudo, João não baixa os braços. A conclusão do 6.º ano foi mais do que motivo de festa lá em casa. Agora, deseja alcançar o diploma do 9.º ano. Depois, quer candidatar-se à Polícia Marítima. "O meu pai só me diz: 'Fazes muito bem, meu filho'." Nem todos são tão determinados. Igor Brás, por exemplo já fez 28 anos e não foi além do 6.º ano. Desistiu da escola há dez anos. "Na altura, não se falava da importância de estudar para se ter um emprego." A sua história confirma a tese de que as baixas escolaridades se reproduzem nas famílias. O pai é serralheiro, a mãe trabalha a dias. Um fez o 4.º ano, o outro o 3.º ano. Nasceram os dois no bairro da Musgueira, em Lisboa, uma manta de retalhos feita de barracas, que cresceu nos anos 60 para receber os desalojados das obras da Ponte sobre o Tejo. "Na verdade, não fui muito bem aconselhado", desculpa-se. Igor ainda mora com os pais e já fez de tudo. O último trabalho foi como "alpinista ", a lavar prédios. Desempregado, ocupa-se agora com os clubes do bairro o Tunelense e o Águas da Musgueira. "Fazemos tudo para tirar os miúdos da rua", garante.

A grande força motora do bairro é a equipa da casa amarela, que nasceu lá no meio: um centro social, prestes a cumprir 50 anos. "Oferecemos uma mediateca que abre diariamente depois da escola, para que todos tenham apoio até os pais chegarem a casa", resume Constante Rodrigues, 37 anos, atual coordenador do espaço, enquanto cumprimenta Igor e o convida para uma partida de pingue-pongue.

No decorrer do jogo, lança-lhe o desafio: um curso de atendimento e acolhimento.

"Dá equivalência ao 9.º ano?", pergunta o rapaz. "Não, não dá", esclarece Constante.

"Isso é que me dava jeito para tirar a carta", desabafa o rapaz. Nem sabe que para tal basta saber ler e escrever. Mas, no seu íntimo, significaria mais um passo.

"Também já o podia ter feito, mas o futebol mete-se sempre de permeio."


PROBLEMA NACIONAL
Na Venda Nova, freguesia limítrofe da capital, a vida não é muito diferente, conta-nos Filipe Araújo, 20 anos, hoje aluno da Escola Intercultural. "Nunca fui muito amigo de estudar." Só completou o 6.º ano, no ensino regular. Chumbou três anos, uma vez no 4.º e duas no quinto. Acabou por inscrever-se naquela escola com via profissionalizante e centro de Novas Oportunidades para adultos. Completou o 9.º ano, em dois anos, e está na reta final para terminar o décimo segundo. Quer ser mecânico. Os pais? A mãe, 47 anos, lava es- cadas. O pai, 48, trabalha nas obras. Nunca se zangaram com o filho pela sua má prestação na escola: "Eles só queriam que tivesse uma vida melhor." Foi a pensar nisso que a mãe de Gonçalo, 18 anos, miúdo de Sesimbra que foi pelo mesmo caminho, aceitou que ele fosse morar com o pai, no Norte. "Já não sabia o que me havia de fazer", recorda o rapaz, meio envergonhado. Não correu bem.

"Sou muito irrequieto e fui chumbando até aos 16 anos." A primeira vez no 7.º ano, outras três vezes no 8.º ano. Lá conseguiu fazer o 9.º com a ajuda do PIEF Programa Integrado de Educação e Formação, medida de exceção que se apresenta como a última solução, quando tudo o mais falha.

Está agora no 10.º ano, na via profissional. Espera acabar o Secundário.

"É um problema nacional e Sesimbra não foge à regra", assume Felícia Costa, a vereadora municipal da Educação, que, há uns anos, criou o programa Abandono Zero. Com apoio de professores e outros técnicos do Ministério da Educação, e agora também da EPIS, sinalizaram todos os miúdos do concelho que estavam há anos em território de ninguém. "No início, os alunos vão à escola mas não às aulas. Mais tarde, já nem à escola vão." Agora, as suas atenções centram-se nos mais novos. "Os efeitos indesejados do insucesso sentem-se logo no 1.º ciclo", remata a vereadora. A história de Ruben Soares, 18 anos, confirma-o. Chumbou, pela primeira vez, no 3.º ano e, pela segunda vez, no sétimo. No ano seguinte, mais uma vez. Entretanto, fez 16 anos e decidiu ir trabalhar. Conseguiu empregar-se aqui e ali a servir à mesa e num call center. Nada muito duradouro. Com a crise, o tempo entre biscates tornou-se cada vez maior.

Como os pais exploram um café, no andar de baixo da casa, na Quinta do Conde, Ruben levanta-se cedo e dá uma ajuda. Ao fim da tarde, é vê-lo a praticar boxe, no clube da freguesia. Mas sobra-lhe tempo livre. Neste cenário, a escola surge, novamente, como a melhor das oportunidades. Decidiu inscrever-se.

"Primeiro, queria fazer o 9.º ano e, a seguir, tentava o curso da Marinha." Quando fala nisso, os olhos brilham-lhe. Depois, pousa o olhar no chão. "Se não conseguir, então logo tento fazer a escola. Outra vez."

Fonte: Visão

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